O Prefeito, recém empossado, está em seu gabinete, assinando as nomeações para os cargos de chefia que passarão a compor a sua equipe. Alguns já foram prometidos em acordos políticos que viabilizaram a sua eleição; outros servem para recompensar uma militância em seu favor. Outros devem ser meramente funcionais e nem despertariam tanto interesse. Chega ao documento referentes à chefia do TFD (Tratamento Fora do Domicilio), passando os olhos sobre os dados da funcionária nomeada, sem se lembrar muito bem de quem se trata, embora ela já tenha lhe prestado serviços, como funcionária concursada, em mandato anterior.
Trata-se de uma funcionária que exerce irrepreensivelmente a função há vários anos. Além de passar o dia envolvida com os dramas dos inúmeros pacientes que dependem de um bom funcionamento do TFD, ela leva para casa dois celulares que tocam diuturnamente, sem diferenciar dias de semana de sábados, domingos ou feriados. Sua tarefa é equacionar as inúmeras dificuldades administrativas com as necessidades urgentes de pacientes, extremamente carentes em sua maioria, debilitados com doenças para as quais o município não dispõem de tratamento. É um paciente grave, que precisa ser encaminhado para São Paulo, mas não tem ambulância, que foi buscar outro paciente em Barretos. É outro que precisa de um exame caríssimo, cuja cota para o município está esgotada. Um outro com uma doença grave, dependendo de uma consulta que o sistema agenda para meses à frente.
Inúmeras vezes, a funcionária se envolve pessoalmente com estes problemas, e não raro tem-se notícia de iniciativas dela, junto com outros colegas, para angariar fundos para uma cesta básica destinada a algum paciente em situação crítica. Também não foram poucas as vezes que foi vista com lágrimas nos olhos, sinceras, motivadas por dramas vividos por aqueles que diariamente atende; como não foram poucas as vezes que lutou contra adversidades ou imposições burocráticas dos serviços que atendem os seus pacientes, para conseguir maior celeridade ou uma disponibilidade que não havia. De reputação ilibada, nunca esteve envolvida em nenhuma situação de obter vantagem pessoal, apesar das prerrogativas do cargo proporcionarem oportunidades de ganho ilícito ou obtenção de benefícios próprios. Como é uma pessoa muito ligada à fé, acaba oferecendo apoio espiritual a inúmeras pessoas que chegam à sua mesa desesperadas, em busca de tratamento para um câncer que acabou de ser diagnosticado, ou de uma cirurgia cardíaca que é sua única esperança de permanecer vivo. Várias vezes, chegou em casa, feliz da vida, porque um paciente voltou ao TFD para lhe dizer que sobreviveu e para agradecê-la por seu empenho. Também várias vezes, chegou chorando por saber que algum dos seus pacientes, como costuma se referir, não resistiu à sua enfermidade.
Embora o Prefeito talvez não saiba, ela desempenhou por anos a tarefa, efetivamente, mesmo sem ter a nomeação e, óbvio, a remuneração correspondente ao cargo de chefia. E embora ele também não saiba, ela chegou a desenvolver, por conta própria um pequeno sistema informatizado para organizar os trabalhos no setor. Nomeada, ela exerceu a função nos dois últimos anos da gestão anterior. Ou melhor, seiscentos e noventa e dois dias: pela legislação municipal, faltam-lhe 38 dias para que seja apostilada no cargo e deixe de ter sobre sua cabeça a espada da incerteza do viés político inerente aos cargos de confiança. No caso dela, uma legítima e rara situação de merecimento desta discutível benesse, que já não mais vale para os novos nomeados.
O Prefeito toma a caneta e curva-se sobre a mesa para assinar. Mas esse é um dos momentos mais importantes do jogo político, onde a conta da eleição é efetivamente paga. Por isso ele não está sozinho na sala. Alguns secretários o rondam e um deles, mestre na arte de rondar o poder, ao ler o sobrenome da futura chefe do TFD o interrompe:
– Você vai nomear esta aí? Não sabe quem ela é?! Recolocando a caneta sobre a mesa, o Prefeito toma a folha novamente nas mãos e relê, pensativo sobre os dados. Um outro, indiferente às implicações que a atitude covarde poderia causar à vida da funcionária, complementou ironicamente:
– Ela é irmã daquele chargista que pega no pé dos políticos da cidade…
Outro secretário intervém, timidamente, tentando resguardar a hombridade que tem, mas sem colocar em risco sua alta função:
– O que ela tem a ver com isso? É excelente funcionária, nunca trabalhou politicamente contra você, depende do salário e vai ser punida por causa da atividade do outro?!
Aos sorrisos sarcásticos que se manifestaram nos cantos de várias bocas presentes, seguiram-se lágrimas nos olhos da funcionária ao receber a notícia da exoneração, ironicamente no dia do seu aniversário. Danem-se seus anos de dedicação, dane-se sua honestidade. Dane-se a sua competência. Dane-se o seu comprometimento. Dane-se os compromissos que tem com o minguado salário.
E dane-se também a liberdade de imprensa.
Pobre da cidade governada por indivíduos com este tipo de mentalidade, com esta deficiência de caráter e capazes de covardias irreparáveis como esta. Usurpam do poder, refestelando-se enquanto as pessoas de bem perdem a capacidade de se indignar e se revoltar contra as atrocidades cometidas, tratando-as como se fossem inevitáveis nesse jogo podre. E, definitivamente não são.
(Como as fontes, obviamente, nunca confirmariam publicamente a veracidade do motivo da exoneração, claro que este texto deve ser considerado uma mera obra de ficção e qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos reais terá sido mera coincidência. Exceto a parte das qualidades da funcionária, onde não faltarão amigos verdadeiros, colegas de trabalho e pacientes agradecidos para testemunhar)
IVAN VASCONCELLOS, arquiteto e irmão de Silvia Andrade Vasconcellos.
Para ler e comentar a notícia no site da Folha da Manhã: http://www.clicfolha.com.br/noticia/19573/cronica-da-caneta-covarde
Para ouvir a música do Chico Buarque: https://www.youtube.com/watch?v=iOy6Qcn_Nhc